segunda-feira, 15 de junho de 2009

Alfabetização e Transposição da L1 para L2: são sinônimos?

Patricia Escanho

Obs. L1 refere-se à primeira língua, neste caso Língua Portuguesa, e L2 à segunda, Língua Inglesa. LP: Língua Portuguesa, LI: Língua Inglesa

Uma dúvida comum às famílias quando pensam sobre educação bilíngue é: quando ocorre a alfabetização na segunda língua? Para respondê-la precisamos, antes, discutir alguns conceitos importantes para a compreensão de como, de fato, os alunos passam a ler e escrever na segunda língua.

O primeiro é o conceito de alfabetização. Ser alfabetizado costumava significar conhecer as letras do alfabeto e suas combinações para formar palavras, sendo possível, a partir desse conhecimento, decodificar (ler) ou codificar (escrever) textos. Por isso, o currículo de alfabetização era organizado a partir de famílias silábicas (B+A=BA, B+E=BE e assim por diante). E, como a ênfase desse ensino recaía na memorização das famílias silábicas, as práticas de escrita se resumiam à manipulação dessas sílabas para a formação de palavras, cópias de palavras e letras. Entendia-se que o aluno só daria conta de ler e escrever quando memorizasse todas as famílias silábicas, sendo assim, os únicos textos apresentados para leitura eram aqueles que continham as sílabas já trabalhadas em sala e conhecidas dos alunos. As cartilhas, livro didático utilizado para esse tipo de alfabetização, são famosas por textos como: Ivo viu a uva ou até a vaca voa. Nessa perspectiva de ensino, ler e compreender são tarefas distintas, por isso era possível apresentar um texto como a vaca voa, cujo sentido é, no mínimo, curioso. O que se desejava com isso? Favorecer a prática das famílias silábicas, tanto na escrita, quanto na leitura.

Há aproximadamente 25 anos, a partir das pesquisas de uma educadora chamada Emília Ferreiro, a ideia de alfabetização começou a se modificar. Segundo essa teoria, ler e escrever não diz respeito apenas ao domínio do código alfabético (famílias silábicas, norma culta), mas diz respeito também a aprender estratégias para compreender textos impressos e a conhecer as funções da escrita e da leitura na sociedade contemporânea. Textos como Ivo viu a uva e a vaca voa não oferecem suporte para os dois últimos objetivos: compreender ou se aproximar de práticas sociais da escrita. A ênfase da alfabetização passou do código para o texto e alunos passaram a ser apresentados a diferentes tipos de textos literários ou não: contos, poemas, bilhetes, receitas, artigos de jornal, por exemplo. Hoje, aprendem sobre o código alfabético a partir e ao mesmo tempo em que conhecem textos diversos. Acredita-se, enfim, que ler e escrever é muito mais do que dominar o código, embora esse domínio seja fundamental para habilitar o aluno a manipular textos diversos.

Alguns autores, inclusive, utilizam o termo letramento para se referirem ao que o aluno efetivamente faz com a escrita e a leitura ao dominar o código, por exemplo: experimentar e usufruir da riqueza da linguagem, aprender sobre o mundo e compartilhar conhecimentos com outros, refletir sobre suas vivências, resolver problemas cotidianos etc.

Outro conceito importante para voltarmos à pergunta inicial é o conceito de transposição ou transferência. Vale dizer que a alfabetização ocorre apenas uma vez na vida, sendo assim, trata-se de dois conceitos diferentes. Transposição refere-se aos conhecimentos adquiridos com a experiência de alfabetização sendo transferidos para outro idioma.

Geralmente, no início do 2º Ano do Ensino Fundamental Bilíngue os alunos lêem e escrevem na L1. Ainda que os grupos sejam heterogêneos e alunos apresentem maior ou menor fluência nessas tarefas, nesse ano inicia-se e intensifica-se gradativamente um trabalho com a Língua Inglesa escrita. Algumas das habilidades que se transferem de uma língua à outra e que alunos colocam em prática automaticamente são: memória visual, que desenvolveram ao longo do 1º Ano; estratégias de compreensão de textos (encontrando idéia principal ou detalhes do enredo, por exemplo) e postura de escritor/leitor que começa a ser desenvolvida (usam livros de referência para buscar informações, fazem anotações, por exemplo). Ao pensarem sobre o sistema de escrita da L1 e da L2 os alunos perceberão que existem elementos comuns às duas línguas. O que é comum se transfere. Um exemplo: nas Línguas Portuguesa e Inglesa o uso do prefixo se dá da mesma maneira. O prefixo anti (contra) forma palavras como antídoto/antidote; ou o prefixo bi (dois) forma bicicleta/bicycle. A transferência desse conhecimento garante que alunos produzam esse tipo de palavras, se não de maneira convencional em L2, de maneira muito aproximada ao convencional.

O que consta apenas de uma das línguas não pode ser transferido. Neste caso alunos aprendem particularidades da L2. Esse é o maior enfoque a partir do 2º Ano. Seguem alguns exemplos de diferenças entre as estruturas das duas línguas.

Encontros consonantais com S inicial não existem na LP. Mas são muito comuns na LI em palavras como school, small, snail. A tendência é que alunos bilíngues acrescentem uma vogal antes do S ao escreverem essas palavras: ischool, por exemplo. Alunos aprenderão esta regra ortográfica da mesma maneira que aprenderão regras ortográficas da LP.

Falsos cognatos: são palavras escritas de maneiras semelhantes em línguas diferentes, pois têm a mesma origem (grega, latim, por exemplo), mas carregam sentidos diversos. Exemplos: push (empurrar) pode ser confundido com puxe ou eventually (finalmente) com eventualmente. Alunos aprenderão a considerar o contexto em que tais termos aparecem para poderem lhes atribuir sentido.

Fonética: a matriz fonética da LP e da LI são muito diferentes. Sabemos o quanto os alunos se apóiam na oralidade para escreverem, portanto, é importante iniciar-se um trabalho com fonética logo que começam a escrever na L2. Em inglês existem muito mais sons de vogais do que em português. Temos, por exemplo, 2 sons diferentes para o que falantes da LP entendem ser i: /iy/, representado por ea (como em leave) e /I/, por i (como em live). Na LP temos apenas uma representação do som /i/, a vogal i que encontramos em igreja, dia ou andei. Por isso, é natural que alunos usem apenas i para escreverem leave, o que os leva a um equivoco importante: leave significa partir e live, viver. O trabalho com fonética chama a atenção para a relação som-letra na L2.

Voltando à questão inicial, os alunos passam a pensar na L2 também como linguagem escrita a partir do 2º Ano do Ensino Fundamental Bilíngue. Ao final desse ano já lêem e escrevem nos dois idiomas. Porém, ambas as línguas serão trabalhadas com objetivos específicos cada vez mais complexos ao longo de todo o Ensino Fundamental. É por isso que muitos autores dizem que a alfabetização nunca se encerra. Estamos eternamente aprendendo novas palavras, novas regras presentes na norma culta e, em meio à experiência da linguagem, aprendemos como usá-la para diversos fins.
Outro dia ouvi de uma professora, que relatava os tipos de erros que seus alunos bilíngues cometiam ao produzirem textos em L2, a seguinte conclusão: esses erros são pra quem pode e não pra quem quer. Concordo. Lidar com duas línguas academicamente é tarefa e tanto.


Referências bibliográficas:

Genesee, Fred. Dual Language Instruction: a handbook for enriched education, Thomson Heinle, 2000.
Soltero, Sonia W. Dual Language: teaching and learning in two languages, Pearson Education, 2004.
Swan, Michael. Learner English: a teacher’s guide to interference and other problems, Cambridge, 2001.